Figura 1:  Escravos, de Charles Landseer (coleção Cândido Guinle de Paula Machado) s/d

Escravizados, a base da economia urbana

Os escravizados, no Rio de Janeiro do século XIX, eram conduzidos para a produção e venda de bens de consumo, a partir de um comando de produção [2].  As casas, nas cidades, eram um tipo de unidade de produção e consumo, onde diversos objetos de uso doméstico eram fabricados na própria residência. A produção doméstica era parte para consumo interno e o excedente para ser comercializado de porta em porta, na cidade.

O comando destas atividades ficava a cargo da mulher, a dona da casa. Era ela quem mantinha sob controle a limpeza da casa, a preparação dos alimentos, o comando das escravas, além de dirigir a indústria caseira, amas de meninos, carregadores, ganhadores, rendeiras, costureiras, lavadeiras, passadeiras ou de pintores, pedreiros e barbeiros onde, via de regra… “As mulheres gerenciavam essa pequena empresa sem concurso algum do marido” (Costa apud Baptista, 1999, p. 82)[3]. De uma grande variedade, as mercadorias dos tabuleiros das escravas ou escravos quitutes, bebidas, tecidos e toalhas bordadas, eram quase sempre orientadas pelas senhoras donas da casa.

Os escravos além de atuar no comércio ambulante e nas vendas, alegrando a cidade com seus gritos, seguidos de crianças que iam correndo pelas ruas atrás das mães, também transportavam pessoas em pequenas cadeiras, prostituíam-se ou pediam esmolas, além de executarem as tarefas domésticas cotidianas.  Os donos de escravos consideravam seus cativos animais de carga, máquinas e criados domésticos e de “ganho”[4]. Os escravos cuidavam de todas as suas necessidades e realizavam toda sorte de trabalho mecânico para eles.  As formas de utilização da mão de obra escrava, bem como a forma de divisão dos lucros podiam variar de casa para casa:

Certos escravos, pelo fato de ocuparem funções essenciais na dinâmica econômica da cidade, alcançaram relativa independência material, graças a um trabalho exercido longe dos senhores durante boa parte do dia e, às vezes, durante a noite. Estes, sendo obrigados a entregar aos proprietários o total ou uma porção dos seus ganhos constituem, certamente, um bom investimento. (Mattoso, 1997, p. 183)

Ou seja, ao final do dia ou período de dias definido pelo seu dono, o escravizado fazia o acerto da sua venda, entregando o pagamento de parte ou o total das vendas efetuadas ou do serviço prestado, sob pena de punição.  A vida cotidiana do escravo era organizada e controlada por seu dono, embora fosse o agente do trabalho. Embora os escravos quase sempre fossem impedidos de compartilhar da riqueza que geravam, o fato de poderem circular num ambiente urbano, a cidade do Rio de Janeiro, oferecia algumas possibilidades de ganho.

Figura 2: transporte de carne de gado, de Jean Baptiste Debret, Belo Horizonte, Vila Rica Editora Reunidas, p.49

Escravos habilidosos, dependendo de acordo prévio feito com seu dono, poderiam ter parte do seu lucro assegurado.  Alguns teriam até permissão de ter terras para desenvolver o seu plantio onde utilizavam esses quintais para plantar frutas e verduras e criar pequenos animais.  Estes escravos, uma exceção, poderiam criar desta forma sua própria fonte de renda. Os poucos que conseguiam prosperar poderiam comprar a sua própria liberdade e até investir seu dinheiro comprando escravos para servi-los, além de fazer diferenciados negócios envolvendo terras, alimentos ou jóias de ouro e prata, “Os mais ricos, por sua vez, facilitavam a entrada de outros escravos no negócio de vendas no Rio ou mascataria no interior” (Karasch, 2000, p. 284). 

De uma forma geral, o sistema econômico do “escravo de ganho” começava fora do centro urbano no campo ou nos subúrbios. Os donos mandavam trabalhar em hortas para produzir frutas, legumes e verduras para vender na cidade.   Antes do dia clarear, filas de escravos, partiam de sítios e fazendas das vizinhanças do Rio com carregamentos na cabeça. De acordo com Debret, o tiro de canhão que anunciava a abertura dos portos começava o dia às cinco e meia da manhã na cidade. Ao chegar na cidade, vendiam os produtos ou negociavam com outros vendedores que tinham pequenas bancas no mercado.   Normalmente este trabalho durava todo o dia e eles faziam apenas duas rápidas paradas, uma para o almoço e outra para a janta.   

Carregando em grandes cestas trançadas, tabuleiros de madeira ou caixas sobre as cabeças, escravos de ambos os sexos vendiam de tudo; “artigos de vestuário, romances e livros, panelas e bules, utensílios de cozinha, cestas e esteiras, velas, poções de amor, estatuetas de santos, ervas e flores, pássaros e outros animais, escravos e jóias” (Graham, 1988, p. 141). As vendas eram feitas em tempo integral ou parcial, dependendo das necessidades do seu dono. Ao anoitecer, os ambulantes poderiam trabalhar ainda em casa, caso houvesse necessidade. Finalizando o dia de trabalho, se tivessem direito a parte do lucro, utilizavam seus ganhos para a compra de mais comida ou roupas, de objetos de ritual religioso, alguns importados da África ou talvez juntassem economias para comprar a sua própria liberdade. Esta jornada de trabalho repetia-se de seis a sete dias por semana sendo respeitados, por poucos donos de escravos, os domingos e feriados de direito oficial.

As ruas ficavam apinhadas de escravos que tentavam de todas as formas possíveis vender seus produtos. Graham define bem esta situação… “Esse padrão cresceu evidentemente ao longo da primeira metade do século XIX, a ponto de os estrangeiros se queixarem do grande número de vendedores de rua ansiosos que os cercavam tentando vender seus produtos, pois se não conseguissem ganhar a quantia estipulada por seus donos para aquele dia seriam espancados” (Graham, 1988, p. 140). 

As atividades dos chamados ‘escravos de ganho’ eram exercidas geralmente por negros ou, em menor incidência, por índios.   Existem relatos de índios botocudos usados em 1846 no Rio de Janeiro, transformados em escravos, bem como de meninos botocudos que foram enviados ao Rio, comprados dos pais ou como direito de conquista de guerra. Neste sistema de comércio havia divisão de tipo de serviço por especialização. Por exemplo, um tipo seleto de escravo doméstico era selecionado para exercer a função de escravo comprador; um escravo de muita confiança, que era mandado com dinheiro aos mercados para comprar nas vendas ou com os escravos de ganho, com o direito de administrar este dinheiro da melhor forma possível.

Figura 3: Vendedores de capim e leite, Jean Baptiste Debret. In. O Brasil de Debret, 1993, BH.p. 43, Rio de Janeiro

Os escravos de ganho facilitavam a obtenção de dinheiro por outros escravos mandados às compras diárias.   Ao comprar alimentos de outros escravos mais barato do que nos locais licenciados, eles conseguiam uns trocados para seu próprio uso. Compravam então mais comida de outros escravos que mantinham restaurantes ao ar livre ou vendiam nas ruas. Obtinham aguardente desses mesmos escravos ou dos que destilavam sua própria bebida. Se não compravam, faziam escambo com artigos que os escravos urbanos fabricavam em seu tempo livre, como cestas, esteiras, chapéus, potes de cerâmica, vestidos, estatuetas religiosas, instrumentos musicais e cachimbos. (Graham, 1988, p. 138)

Outro tipo de trabalho bastante valorizado era o das escravas que faziam e lavavam roupas e as que faziam rendas.  As roupas eram lavadas em pelo menos três diferentes áreas da cidade. No Largo da Carioca, o grande tanque de lavar ao pé do aqueduto; a mais central, o Campo de Santana onde existem registros de em média duzentos homens e mulheres que esfregavam roupas, segundo Graham “em grandes tigelas de madeira, sentados em cima de barris de água” e no vale das Laranjeiras.  As roupas eram lavadas, batidas nos muros e estendidas no gramado para secar. Os escravos lavadores de roupa exerciam tal função para o seu próprio dono ou para terceiros, em troca de pagamento.

Existiam algumas diferenciações de trabalho, segundo o sexo, ou melhor a força do braço.  As mulheres ocupavam-se mais com o negócio de produtos agrícolas e a fabricação doméstica e os escravos homens negociavam mais produtos animais. Os escravos homens levavam caixas de legumes ou cestas de frangos sobre a cabeça, conduziam pequenos animais das áreas rurais, alguns para serem vendidos por conta própria, mas a maioria para ser entregue a matadouros e açougues.   “Havia ainda os vendedores de ervas, os feiticeiros, as rezadeiras, os tata inkisses, os conhecedores dos mistérios das folhas e dos deuses… os negros conhecedores dos mistérios de Katendê e Ossanhê” (Baptista, 1999, p.70).

Era raro um escravo exercer apenas uma atividade, o número de serviços que um escravo realizava no dia a dia era diretamente proporcional à riqueza e à posição social do dono.   O mais comum era que exercessem vários tipos de trabalhos ao mesmo tempo.  Um escravo barbeiro que é também músico ou de um pedreiro que pode ser enviado para cortar cana. É difícil, portanto, definir fronteiras para os diversos grupos sociais dessa sociedade escravista do século XIX.   Tanto entre os libertos quanto entre os escravos, existem os que são favorecidos e os miseráveis, os escravos naturalmente, dependiam da condição financeira do seu dono. 

 O que se pode observar é o estabelecimento de uma relação de vinculação entre os elos nesta cadeia de produção de trabalho, onde escravizados comercializavam os produtos e sustentavam, com o produto final do seu trabalho, famílias inteiras, que embora dependessem do trabalho dos seus escravos, conduziam e lucravam toda a produção. 

Ou seja, “os escravos não exerciam qualquer papel de decisão sobre a economia. Sua função econômica básica, era proporcionar a mão de obra para o sistema econômico desenvolvido por seus donos e os negociantes internacionais” (Graham, 1988, p. 310). Estreitavam-se, nos dois sentidos, a dependência entre um bom escravo ganhador e sua senhora. 

Os escravos tinham suas áreas de atuação definidas e baseadas na agricultura de subsistência, fabricação e comércio, ficando restritos aos setores de baixo status da economia.  Viviam em uma estrutura social que balizava com termos e castigos suas ações.   Fortes, prisões e pelourinhos lembravam-nos, a toda hora, o poder do seu senhor. Uma coletividade e ou família que os dirigia para o trabalho de venda nas ruas, onde poderiam desfrutar um ilusório ar de livre-arbítrio, de se estar na rua para comprar, vender, prostituir-se, roubar ou mendigar mas que deixava bem claro até onde poderia ir tal esta liberdade [5].

O espetacular no cotidiano

“…um espaço que é bom para se estar nele.”

(Carlos Castaneda)

Figura 4: Rua Direita, no Rio de Janeiro, de Johan Moritz Rugendas, Itatiais, 3a div, p. 13.

Os espaços públicos no Rio de Janeiro do século XIX funcionavam como pontos de convergência – espaços dinâmicos de suporte de artes performáticas.  As praças e ruas tornavam-se pontos de encontros e facilitavam distintas formas de interação social entre seus frequentadores habituais, os escravos.  Tais espaços, constituíam-se, segundo Cardoso a “base da estrutura e da identidade das primeiras cidades coloniais brasileiras”, evoluindo para o acontecimento de “inúmeras formas de interação social” (2005, p. 26).  A chegada do peixe fresco ao mercado, as negras vendendo apetitosas frutas tropicais, o transporte de objetos nas carroças ou pessoas em cadeirinhas, pequenos intervalos roubados entre uma atividade e outra _ dão a medida da diversidade do meio urbano, verdadeiros locais de trabalho, passeios, compras, vendas, encontro e performances políticas, como também de castigos exemplares, citando os pelourinhos, entre tantos.

Canto, dança e batuque no trabalho

Na rua, os negros cantavam e vendiam bugigangas, em praticamente todos os lugares, os escravos trabalhavam, nas mais diversas atividades e cantavam. Os escravos do Rio cantavam em todas as ocasiões possíveis, no movimento do mercado, no pregão dos ambulantes.  Os grupos de carregadores cantavam em coro em suas línguas africanas ou em português enquanto circulavam pelas ruas com pesados fardos sobre as cabeças. Era comum o canto como forma de manter o ritmo em trabalhos que exigiam a força do grupo como equipe para manter a unidade; os escravos que puxavam tonéis de água sobre um carro de quatro rodas, por exemplo, costumavam cantar.

“Vem, carga,

Vem logo para casa!”

Alguns donos espertos permitiam que seus escravos cantassem e até que um tambor os acompanhasse, pois assim obtinham mais trabalho deles” (Graham 1988, p. 125). Ao circular na venda de seus produtos, havia um tipo de canto na cidade que era bastante peculiar.   Eram os pregões dos vendedores ambulantes, uma espécie de propaganda dos produtos à venda, que anunciavam as mercadorias pelas ruas.  Nos pregões, a performance consistia de cantos e gritos de melodias, em forma de rimas acompanhadas ou não de tambores ou violões, verdadeiros jingles de publicidade.  Às vezes, paravam para descansar, reunindo-se em torno de um cantor principal e cantando em grupo.

“É meio dia, Dona Maria, panela no fogo, barriga vazia” 

“cocada, cocada é de cajá, é de caju, abacaxi”…

Quando era possível carregar junto com os produtos para venda, levavam pequenas Marimbas também conhecidas como Kalimbas ou Malimbas, um instrumento africano, composto de meia parte de um coco onde se prendiam pequenas hastes de metal, para serem tocadas com os dois polegares. “Os carregadores quase sentavam na frente de casas particulares passavam horas “distraindo-se com a própria música, produzida com quase o mesmo esforço exigido para girar os polegares” (Ruschenberger apud Graham, 1988, p. 316). Havia tambores de muitos tamanhos e formatos, que podem ser facilmente identificados nos registros iconográficos do século XIX.  Com esses instrumentos de sua terra, celebravam e evocavam “lembranças de casa nas canções de sua terra natal” (Graham, 1988, p. 315).  Além de tambores, os cativos tocavam também chocalhos de cuia, muito usados na África para manter o ritmo. 

Os escravos também improvisavam com as ferramentas da profissão tirando sons destes materiais para acompanhar suas músicas. Ewbank observou a comemoração, de negros escravos construtores, pela colocação dos primeiros caibros do telhado de uma casa, quando “artistas negros e brancos lá do alto estavam batendo con gusto em vigas, alavancas e pranchas.  Ficaram assim até o dono aparecer e oferecer-lhes ‘uma doação’, depois do que ‘chocalharam com estrépito’ mais música ‘com martelos nas traves’” (apud Karasch, 2000, p. 281). 

Em outro exemplo, Ewbank cita que “encontrou um grupo de vinte negros que estava carregando toda a mobília de uma casa nas cabeças.  Enquanto ‘trotavam’, cantavam a intervalos numa língua angolana e seu líder marcava o ritmo com um ‘chocalho de cuia, orlado de trapos de tapete’ em sua mão” (Ewbank apud Karasch, 2000, p.281).

Qualquer que fosse o tema ou motivo, os escravos cantavam no trabalho, acompanhados frequentemente por instrumentos variados, uma característica essencial do ‘clima’ da cidade.   Dentre os instrumentos musicais utilizados, encontravam-se os africanos como também os europeus. Era comum que escravos tocassem: violinos em barbearias, orquestras da elite e bandas e coros de igreja. Este hábito de usar instrumentos africanos e europeus e de misturar tradições musicais começou, em parte, com os escravos músicos que tocavam violinos para clientes brancos, enquanto esses cortavam os cabelos. Além de tocarem instrumentos europeus, vários escravos aprenderam também as músicas europeias …“os viajantes relataram que eles cantarolavam ou assobiavam as últimas modinhas de Portugal e polcas da Europa; e para surpresa deles, os negros aprendiam com facilidade a difícil música vocal europeia, em especial aquela cantada em latim pelos coros religiosos da época …“dos repertórios de antífonas católicas em latim a canções românticas francesas, de animadas polcas e lentas modinhas portuguesas e canções populares cariocas” (Graham,1988, p. 326). A música branca das Igrejas e salões do Rio de Janeiro chegava às ruas da cidade, os escravos cantavam acrescentando melodias europeias à batida dos tambores. Além de cantos e batuques, os escravos dançavam.   Em qualquer lugar podia-se formar uma roda de batuque que naturalmente evoluía para uma dança animada e ‘frenética’, segundo o termo de muitos historiadores.  Debret cita em seus relatos:

O escravo parava na rua e começava a cantar; outros, que eram seus compatriotas, reuniam-se em torno dele.   Acompanhavam-no com um refrão ou um certo grito, um tipo de refrão estranho articulado em dois ou três sons.   Após o canto, começava uma pantomina improvisada por aqueles que iam para o centro do círculo.   Durante a encenação, as faces dos atores ficavam possuídas por “delírio”. Outros ainda batiam palmas, duas batidas rápidas para uma lenta.   Com o fim da canção, o encantamento desaparecia; cada um seguia seu caminho friamente, pensando no açoite do senhor e na necessidade de terminar o trabalho que fora interrompido pelo “delicioso intermezzo”. (apud Graham, 1988, p. 322)

Figura 5: Capoeira de  Johann Moritz Rugendas

Além da dança recreativa, a dança do jogo lúdico ou ritual, da roda, havia ainda a Capoeira, luta em que aprendiam golpes mortais – luta destinada à auto defesa e a seus inimigos [6].

No século XIX, os negros de ganho e os carregadores praticavam essa forma de dança – luta e frequentemente chegavam a ser presos por ferir ou mesmo matar um inimigo com um golpe.  Com o passar dos anos, a Capoeira foi proibida, porém, quando a polícia não estava por perto, os escravos usavam os momentos de ócio jogando a Capoeira nos mercados do Rio. Desta forma, o canto, a dança e o batuque, ocorridos nas ruas do Rio de Janeiro, definiam o ritmo do trabalho, do lazer, da dor, do tédio, do Banzo.   A presença dos ritmos e movimentos africanos marcavam na cadência do compasso a presença da escravidão no Brasil.

Canto, dança e batuque no lazer

Um homem com as mãos no ar e uma mulher 
com as mãos nas cadeiras dançando
um em direção ao outro (Rugendas).

Eram muitos os dias santos que, somados aos domingos, passavam de cem, restando para o trabalho, um ano útil de aproximadamente 250 dias.  Os senhores de escravos constantemente não respeitavam tais dias festivos alegando uma interrupção das atividades de produção e de terem a preocupação com o que poderiam “aprontar” os escravos. Em seu pouco tempo de lazer os escravos atuavam em reuniões religiosas secretas nas quais preservavam antigas crenças, treinavam Capoeira, ou simplesmente iam para as ruas se encontrar, cantar, dançar e batucar. 

O princípio da celebração de festas de rua, com danças e movimentação de luta, em forma coreográfica, está presente na cultura africana, nos autos de dramatização. Os povos integrantes do reino do Congo – “à época formado pelo próprio Congo, e mais Angola, Macamba, Ocamba, Cumba, Lula, Zuza, Buta, Suda, Bamba, Ambunda, Sonho e Cacongo” – na África já apresentavam como tradição a dramatização de fatos históricos através de danças públicas. Assim suas representações eram compostas de movimentos acrobáticos, para os quais previamente “untavam a pele com óleo” (possivelmente óleo sagrado); usavam espadas com “terríveis floreios”, onde era possível demonstrar sua técnica de guerrear; usavam ainda de interpretação gestual e corporal com movimentos que iam desde a cortesia e majestade até o “cintilar dos olhos simulando a ira contra o inimigo”, a demonstração de danças de guerra e corte, demonstração de domínio e poder, “muito comum na época da escolha do novo rei”(Tinhorão, 2013, p.107).

Os registros policiais declaram uma aglomeração de aproximadamente 1800 escravos no campo de Santana onde, em tal ocasião, “os dançarinos movimentavam-se dentro e fora de um grande círculo com todas as variedades concebíveis de contorções e gesticulações, enquanto quem observa no círculo dava gritos de aprovação e batia palmas” (Karasch,2000, p. 327). No início do século, quando tais festejos eram permitidos no Rio. Luccock observou africanos realizando “uma dança tradicional com uma longa ráfia cobrindo-lhes as cabeças e ombros”, que entendemos poder ser uma dança ritual para Omulu, o deus da varíola.   No casamento de D. Teresa e D. Pedro, “representantes das nações africanas no Rio dançaram diante de suas altezas reais, ao som de seus instrumentos ‘bárbaros’” (Graham, 1988, p. 328).

O tocar dos tambores propiciava o agrupamento de escravos.  Tal fato, em1833, foi proibido por um juiz, alegando que o som dos atabaques atraía escravos de fazendas mais distantes e a polícia passou a prender os que dançavam ao som dos atabaques. “A polícia dispersou um grupo de mais de 200 escravos que estava dançando ao som de tambores” (Graham, 1988, p.316).  A origem de tal proibição foi possivelmente o perigo potencial que tais aglomerações poderiam apresentar.  Por volta de 1849, para driblar esta proibição, os escravos utilizavam praticamente qualquer objeto que estive ao alcance como instrumento de percussão. Passam a utilizar a ideia de bricolage, usavam o que se tinha em mãos:  peças de cerâmica e ferro, conchas, pedras, latas e até pedaços de madeira e as mãos.  Desta forma, os escravos passaram a dançar também ao som das palmas.  Conforme Debret … “um grupo de quarenta negros “da nação mais bárbara” contentava-se em bater palmas em uníssono perfeito, sem música ou palavras” (Graham, 1988, p. 316). 

O bater da palmas ritmadas alcançava variações como duas rápidas e uma lenta, a batida mais comum.  “Os viajantes encontravam em todos os lugares do Rio escravos que improvisavam canto e dança batendo palmas em torno de fontes e nas praças.   Em algumas de suas imagens, os escravos batiam palmas e dançavam ao som de tambores, enquanto em outras não se viam instrumentos” (Graham, 1988, p. 316).  Apesar das proibições e perseguições da polícia, os escravos cariocas continuaram realizando danças na cidade. Três danças das mais representativas deste período foram o Lundu, a Umbigada em suas mais diversas variações e a Capoeira, hoje conhecida como Capoeira Angola.  

As danças de origem africana e as de origem europeia, práticas sociais dos momentos de lazer, não eram dançadas por casais enredados. Geralmente, eles estariam em círculos e todo o grupo participavam. Com o passar do tempo, uma dessas danças emergiu entre todas as outras, incorporou e recriou movimentos de dança específicos, e ficou conhecida pelo nome de Lundu, um Lundu brasileiro, que, trazendo fortes características africanas e um pouco menos europeu, adquiriu um perfil brasileiro.

Falando sobre Lundu, esta dança aconteceu dentro do círculo, geralmente com casais não enredados, com a possibilidade de finalizar o desafio coreográfico com um Umbigada (pequeno movimento de empurrar onde os umbigos de duas pessoas se tocam).

O barulho e as histórias da rua, as ideias e imagens de representação coletiva com suas origens e deslocamentos dentro do espaço público fascinavam os viajantes que pintavam frequentemente seus trajes originais.  Como define Brook, um verdadeiro “Teatro Rústico” ou, como preferimos nomear uma verdadeira Performance Urbana do Cotidiano, nem por isso menos espetacular; esta Performance urbana, instaurada em qualquer tempo e espaço e com plateias ativas, mais próxima do povo, se retro alimentando dele onde trabalhava-se com o que se tinha em mãos, livre aparentemente de unidade de estilo (2008, p.67).  

Uma performance urbana antiautoritária, antitradicional, antipomposa, antipretensiosa, permeada de uma rudeza que a revestia de papel de libertadora social. Uma performance urbana ligada a uma tradição e cultura popular que vinda das mais variadas regiões da África e ia se construindo e configurando como um jeito específico de fazer arte.  Uma performance urbana que permeava provocação e irresponsabilidade, o jogo e a ludicidade, a trapaça e a emergência, e tinha com fonte, energia militante, no entanto, continha uma convenção, um estilo e suas limitações. Uma arte de rua que se nutria das aspirações profundas e autênticas manifestações dos próprios povos distintos que aqui estavam reunidos como escravos e conviventes de um mesmo espaço, da mesma cidade.  Uma arte urbana de audácia que recolhia infinita reserva de energia, definidas em diferentes áreas ao performar o entre e o dentro do cantar, dançar e batucar (2008, p. 72).

 Nas ruas, três elementos marcavam e delimitavam o acontecimento desta Performance Urbana do Cotidiano: A repetição ou o lado mecânico do processo, rodas de cantos e danças que se formavam constantemente, a celebração ou melhor a representação que pode tornar presente tradições e mitos ancestrais dando-lhes vida e a assistência, uma plateia ou assistência participante sempre presente e interativa, sem delimitação rígida entre quem assistia e quem performava. Esses três conceitos de repetição, celebração e assistência sintetizam o conceito de verdade teatral, embora devamos entender que o princípio de ‘verdade’ no teatro está sempre e em constante mudança.  

Nas ruas aconteciam performances compostas de aspereza, suor, barulho, cheiro, presentes em qualquer tempo e espaço, com o povo participando. Performances próximas do povo, que se retro alimentavam dele.  Entre proibições e formas alternativas de festejos, os músicos e vendedores ambulantes que tocavam guitarras europeias e atabaques, cantavam e dançavam ao ritmo de palmas ou tambores iam juntando suas tradições musicais em instrumentos diversos, criando uma acumulação de bens culturais.   Eram  performances de jogo e dança, ocupações transgressoras e saiam da vida cotidiana durante sua duração; traziam em si uma autonomia própria, um fim em si mesmo, não sendo consideradas simples formas de se chegar a algo; atuavam com ordens específicas e novas configurações de comportamentos, uma interpretação própria da vida, uma construção cultural com função social; trabalhavam com a “imaginação da realidade”, que preferimos dizer uma representação da realidade onde é criado outro tempo / espaço, outra temporalidade; um escape da vida real com forma e sentido próprios que, como cita Huizinga, o reconhecimento de um “círculo mágico”.  (2004, p. 85). 

O mundo da performance urbana, do jogo e da dança; nestes círculos aconteciam numa representação para um público, o outro onde o jogador / performer ao entrar em um tempo / espaço alterado e que vivia a ação com intensidade, sem, contudo, deixar de perceber inteiramente que era ele mesmo e que estava em um jogo, uma dança ou uma performance; os três, dança, jogo e performance, podiam conter humor e ludicidade ou mesmo, elevado nível de seriedade nem por isso deixavam de ser um jogo. Afinal, o jogo não era exatamente o sinônimo de humor; trazia em si a possibilidade de inúmeras repetições, porém estas nunca seriam iguais; enfim, tinham ordem e sentido próprios, tensão por criar um mundo dentro de outro mundo e uma incerteza quanto ao resultado, movimento de diálogo entre esses dois mundos, propostas de mudança da realidade cotidiana, solenidade de um rito, ritmo e entusiasmo próprios. 

O Rio, a capital do Império e principal centro urbano da América do Sul neste período, através do povo de rua produzia música, canto e dança mesclado numa mistura de sons e movimentos, forjando um estilo brasileiro harmonioso, peculiar e espetacular. A escravidão, nesse caso, era realmente uma intensa cacofonia de jogo, performance urbana e tradição cultura, rica e híbrida.

E agora, José?

Com o tempo as liteiras e carros de bois entraram em desuso; o trânsito aumentou trazendo pouco a pouco mais movimento.  A cidade tornou-se um cenário diferente, mais frenético e com barulhos diferentes. Passaram-se os anos e o Rio “a maior concentração urbana de escravos existentes no mundo desde o final do Império Romano” mudou muitas vezes, no entanto, uma maioria negra ladeada de alguns brancos continua a carregar outras tinas, agora mais caixas de isopor e plástico, os quilombos persistem na favelas, as ruas continuam abrigando ‘novos perigos’ (Alencastro, 1997, p. 24). 

Com quem compartilhamos hoje as praças, seus becos e ruas? Hoje, escravos modernos, ambulantes, camelôs, crianças, famílias inteiras de rua, loucos transitam por estes espaços. Como são as Performances do Cotidiano Urbano do Rio, de circulação de informações, de lazer, de ordem e desordem? Como são esses momentos de transgressões espetaculares? Segundo Baptista, na cultura atual de condomínios, “o ‘povo da rua’, personagem ‘diabólico’ da cultura popular que vive nas encruzilhadas, não tem vez neste projeto arquitetônico asséptico e sem transversais. São espaços que estilhaçam uma ética que se diz universal, mas que necessita da proteção da polícia e das grades dos condomínios fechados para o bom funcionamento” (1999, 38). 

As performances foram se adaptando aos novos mundos sociais que por sua vez foram sendo definidos por novas convenções, crenças religiosas e políticas, e estabeleceram novo caráter na ocupação destes espaços. Muitos negros, ainda têm uma “subsistência” mínima garantida nas ruas e praias do Rio de Janeiro, continuam servindo “uma burguesia que se deseja ser segura e feliz” (Baptista, 1999, p. 88). Alguns ambulantes nas praias ainda cantam formas atuais de pregões, como o famoso: “Olha o mate, quem vai querer, moça bonita não paga mas, também não leva”, alguns pontos da cidade ainda são especial e sazonalmente convertidos em espaços de dança e teatro de rua, como os arredores dos Arcos da Lapa, excetuando o período do Carnaval quando quase toda a cidade é tomada pela festa. 

Ao fazer uma entrevista com um casal numa praia do Rio, um homem e uma mulher que fazem parte da história das ruas  do Rio de Janeiro,  o rapaz, um jornalista e sua companheira uma bela moça formada em Estética,  com muito orgulho mostraram colares, pulseiras brincos, os balagandans de outrora, fruto de uma pesquisa que eles vêem desenvolvendo  sobre a história das missangas e sementes e o caminho que estes materiais correram desde a África, mais especificamente do povo Massai, até chegar ao Brasil.

Ao final da entrevista falando sobre a perseguição que a polícia faz com frequência aos ambulantes, o casal Carlos e Nishpara declarou: “Em tempo de paz qualquer pessoa tem o direito de ir e vir com os seus bens…” Art. 5, Parág. 9 da Constituição Brasileira, este é um exemplo do atual povo de rua, dois trabalhadores e legítimos co-autores da história de um país chamado Brasil.

    Figuras 6 e 7: Carlos e Nishpara, artesanatos em miçanga, por Denise Zenicola.

NOTAS

[1]:  Coreógrafa, bailarina. Psd. em Danças Negras /Capes, no ISCTE em Lisboa. Docente do IACS/UFF. É pesquisadora na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro junto ao PPGAC e ao NEPAA.  É Coordenadora na ABRACE, Associação Brasileira de Pós Graduação em Artes Cênicas. Formação em Dança Clássica, Contemporânea e Danças Negras. Trabalha com Danças Contemporâneas em Performances Afro descendentes. Diretora do Coletivo Muanes Dançateatro.

[2]:  Introduzida de início na lavoura açucareira no litoral nordestino em meados do século XVI, a escravidão negra espalhou-se por toda a Colônia, interferindo diretamente no modo de viver, de produzir e nas relações pessoais dos indivíduos e de toda a sociedade. Resultou daí um preconceito próprio das sociedades escravistas, em relação ao trabalho manual, que se impôs lentamente conforme aumentou o número de escravos africanos (Algranti, 1997, p. 143).

[3]:  Dois elementos marcaram profundamente as atividades dos colonos no interior dos domicílios e a sua rotina cotidiana: a escravidão e a falta de produtos, que estimulou a produção doméstica.   A necessidade de mão de obra levou os primeiros colonizadores à busca incessante de soluções que pudessem sanar o problema.   Num primeiro momento, são os próprios gentios que farão os serviços da casa, ensinando os colonos nos trópicos a aproveitar os recursos existentes para suprir suas necessidades básicas. Conforme a colonização avançava e as técnicas de transformação dos produtos iam sendo assimiladas e adaptadas, eles seriam substituídos rapidamente pelos escravos africanos, que passavam a predominar como força de trabalho tanto no campo como na cidade, constituindo o elemento fundamental da vida econômica e social da colônia (Algranti, 1997, p. 142).

[4]:  No início do período, o padrão era o imigrante português vender de porta em porta.   Enquanto ele fazia as transações, seu escravo servia apenas de carregador.  Essa prática continuou para pratarias e sedas finas, mas para quase todo o resto, os escravos assumiram a profissão de vendedores ambulantes na primeira metade do século XIX.   Os senhores passaram a preferir comprar e treinar novos africanos na arte de vender, em vez de servirem simplesmente de carregadores.   Quando os brancos voltaram ao negócio da venda ambulante, o termo “negro de ganho” já estava tão associado à ocupação que imigrantes espanhóis e italianos solicitaram licenças de “negro de ganho” (Karasch, 2000).

[5]: Um escravo de ganho – dono de um pecúlio tirado da renda obtida para seu senhor no serviço de terceiros – podia ter seus meios para vestir calças bem postas, paletó de veludo, portar relógio de algibeira, anel com pedra, chapéu coco e até fumar charuto em vez de cachimbo. Mas tinha de andar descalço. Nem com tamancos, nem com sandálias. De pé no chão. Para deixar bem exposto o estigma indisfarçável de seu estatuto de cativo (Alencastro, 1997).

[6]:   Uma teoria afirma que a Capoeira surgiu entre os escravos do Rio e Janeiro que carregavam produtos para a venda em grandes cestas, conhecidas como capoeiras, sobre a cabeça.   Trabalhando nas ruas, nas praias e nos mercados, aprenderam a proteger suas mercadorias e a si mesmos dando golpes potentes com os pés e a cabeça, acabando por estilizá-los numa forma de dança e ou luta (Graham, 1988, p.331).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império In: História da vida privada no Brasil II: Império: a corte e a modernidade nacional, São Paulo: Cia das Letras, 1997.

ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vidas domésticas In: História da vida privada no Brasil I: cotidiano e vida privada na América portuguesa, São Paulo: Cia das Letras, 1997.

BAPTISTA, Luis Antonio. A cidade dos Sábios. São Paulo: Summus, 1999.

BROOK, Peter. O Espaço Vazio: O Teatro Hoje. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

CARDOSO, Ricardo José B. Espaço Cênico – Espaço Urbano: A relação entre os espaços das artes cênicas e os espaços públicos da cidade, PROURB- FAU, 2000. Dissertação de Mestrado, UFRJ.

GRAHAM, Sandra Lauderdale. House and street. The domestic world of servents and masters in nineteenth-century- Rio de Janeiro. New York: Cambridge University Press, 1988.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. 5a. ed. São Paulo:  Perspectiva, 2004.

KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

MATTOSO, Katia M. de Queirós Mattoso. A opulência na província da Bahia In: História da vida privada no Brasil II: Império: a corte e a modernidade nacional, São Paulo: Cia das Letras, 1997.

TINHORÃO, Ramos. Os sons que vêm da rua. Rio de Janeiro: Tinhorão, 2013.

Entrevista concedida em 25/10/2018 – Carlos e Nishpara, artesanatos em miçanga – bhajanbr@yahoo.com.br, praia do Rio de Janeiro com vendedores ambulantes de materiais de adorno em miçangas e sementes. Pesquisadores de ornamentos corporais rituais e profanos da tribo Massai, África.